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15/04/2010 O grito mudo: as várias facetas da voz no teatro
Maria Laura Wey Märtz*
O trabalho vocal no teatro não se restringe às técnicas de aquecimento, respiração, articulação e impostação, de modo a fazer com que a voz do ator chegue às últimas fileiras da plateia sem a necessidade de uso de tecnologia de amplificação ou de abuso vocal.
A voz no teatro faz parte da composição do personagem em todos os seus aspectos. Nesta perspectiva, voz é corpo e corpo é voz. Podemos pensar, inclusive, que não há necessidade de se propagar o som para que a voz de um personagem seja ouvida.
Exemplo disso vemos na excelente interpretação de Helene Weigel (1890-1971) na peça Mãe Coragem, de Bertold Brecht. Importante atriz alemã e diretora da companhia Berliner Ensemble, representou os principais papéis da obra do dramaturgo alemão. A ela, Brecht dedicou o poema "Os Requisitos da Weigel", em que apresenta seu minucioso e artesanal trabalho de atriz na composição do papel-título da peça (link para o poema).
A cena do 3º ato é bastante tensa na relação que se estabelece entre Mãe Coragem e um Sargento que fala, referindo-se a um corpo que jaz sob um lençol na padiola trazida pelos soldados:
“É um elemento de quem nem o nome sabemos. Mas é preciso ficar registrado, para que tudo continue em ordem. Ele uma vez fez uma refeição aqui, com a senhora. Dê uma
olhada, para ver se o reconhece! (retira o lençol). Sabe quem é? (Mãe Coragem nega com um sinal de cabeça). Nunca o viu, antes dele vir comer aqui? (Mãe Coragem abana a cabeça, negativamente). Podem levá-lo. Joguem na vala comum: não há ninguém que saiba quem ele é.”
Em seguida, os soldados saem levando o morto. De acordo com a trama, sabemos que o corpo é do soldado Schweizerkas (Queijinho), filho de Mãe Coragem. Quando os soldados o trazem para a cena, suspeitam que seja mesmo seu filho e querem que ela identifique o corpo, mas ela nega, mantendo uma expressão fixa e ausente.
No entanto, quando o corpo foi levado, Mãe Coragem voltou sua cabeça para a direção oposta e abriu amplamente sua boca, num grito mudo, assim anotado por George Steiner, espectador da famosa montagem do Berliner Ensemble:
“Ela voltou a cabeça e abriu bem a boca, tal como o cavalo gritante no Guernica de Picasso. Um som áspero, terrificante, indescritível, foi emitido pela sua boca. Mas, de fato, não havia som. Nada. Era o som do silêncio absoluto. Um silêncio que gritava e gritava através do teatro, fazendo a platéia curvar suas cabeças como se tivessem sido atingidas por um rajada de vento.”
O grito mudo foi composto após muitas representações: a postura de enorme dor, a boca amplamente aberta sem, no entanto, emitir nenhum som, ganhou expressão e forma quando a atriz se lembrou de uma imagem estampada num jornal, que trazia a fotografia de uma mulher indiana gritando durante o assassinato do seu filho.
O corpo inteiro da atriz se tornou voz, embora voz não houvesse. Podemos pensar que a necessidade expressiva deu ensejo à criação deste grito mudo, que ultrapassa em intensidade e tensão os limites físicos do grito mais forte que a atriz pudesse emitir.
No trabalho artístico é sempre útil a lembrança de que a imaginação pode nos ajudar a superar criativamente os limites do corpo e da voz.
* Maria Laura Wey Märtz - fonoaudióloga clínica, docente do curso de Fonoaudiologia da PUC/SP, doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, autora do livro Problemas de Linguagem – Série Clínica Psicanalítica (Casa do Psicólogo, 2008) e co-autora de Histórias de contar e de escrever – a linguagem no cotidiano (Summus, 1995).
Imagem: A Arte Secreta do Ator, Barba e Savarese, 1995, Editora da Unicamp e Hucitec.
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