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03/05/2012 Claudia Perrotta Livro infantil: Felizes quase sempre
Antonio Prata e Laerte, Editora 34, 2012
“Tristeza não tem fim
Felicidade sim”... mas e se não fosse assim? E se a máxima que fecha os contos infantis de fato se realizasse e nossos heróis e heroínas, príncipes e princesas fossem felizes para sempre?
Bem, o primeiro dia “feliz para sempre” foi mesmo inesquecível para a princesinha desta deliciosa história contada por Antonio Prata e ilustrada pelo cartunista Laerte. Dormir até tarde, acordar com o sol brilhando na janela, passar o dia à toa, com tempo livre para fazer o que ela e seu amado príncipe encantado bem entendessem, sem nenhuma obrigação a cumprir, nem a de escovar os dentes ou tomar banho. Afinal, os que são felizes para sempre têm dentes autolimpantes, e a sujeira não gruda na pele!
Quem já não sonhou com essa vida paradisíaca, com férias eternas, sem problemas ou compromissos a cumprir? Pois é, a princesa e o príncipe desta história estavam mesmo curtindo adoidado, só comendo salgadinhos e brigadeiro, jogando videogame, assistindo filmes, pulando na cama elástica, correndo pelo gramado, de papo para o ar. Quando a noite vinha, dormiam abraçados, sonhando que tudo isso se repetiria no dia seguinte, e no outro, e no outro, e no outro...
E não é que o sonho se tornou realidade? Os próximos mil dias foram os mais felizes de que se têm notícia. Sol brilhando no céu azul, passarinhos cantando, todos os brinquedos à disposição, videogame, filmes, cama elástica, salgadinhos, brigadeiro... Um verdadeiro paraí.... Não! Um verdadeiro TÉDIO!!! Os dois começaram então a se sentir completamente aprisionados nessa vida tão monotonamente feliz.
Irritados, mal-humorados, começaram a se lembrar dos reveses de antigamente: das picadas de mosquito, do choro sofrido depois da injeção dolorida, dos dias nublados, da chuva que estragou o piquenique e coisas assim.
O que fazer? Encontraram então uma solução inusitada: decidiram convocar todos os outros “felizes para sempre” para uma assembleia em busca de alguma ideia para reverter a situação. Não faltou ninguém: Chapeuzinho e a vovó, os 7 anões, a Bela, o caçador, a Rapunzel, o cavalo branco do príncipe encantado... Descobriram que “a infelicidade com a felicidade era geral”! Cinderela, por exemplo, estava bem cansada de seus sapatinhos de cristal e daquela vida tão delicada quanto.
A essa altura, todos estavam mesmo desesperados, e por isso a primeira sugestão foi a de chamar novamente os vilões, para trazer algum risco de volta. Felizmente, ninguém topou – vovozinha não queria nunca mais passar horas na barriga de um lobo mau, a Bela Adormecida maldizia os dias em que só dormira profundamente, os anões não pretendiam voltar a entoar aquela musiquinha irritante, “eu vou, eu vou, pra casa agora eu vou”..., e nenhuma princesa queria ter de encarar madrastas vaidosas e loucas. Não, isso não!, gritaram em coro
Foi então que a nossa heroína, a princesinha, teve uma ideia realmente genial. Mas não vamos estragar a graça da história, continuando a narrá-la, não é?
Inúmeras são as paródias dos contos infantis, que se propõem a com eles dialogar, recriando sentidos nesse jogo de intertextualidade que certamente ainda terá vida longa, como o livro “Chapeuzinho Amarelo”, de Chico Buarque, e também o filme atualmente em cartaz “Espelho, espelho meu”. Não faltam exemplos, e isso mostra o quanto essas histórias clássicas, de tradição oral, ainda povoam nosso imaginário, certamente por tocarem em questões muito humanas, como o medo, a crueldade, a inveja, o abandono, o preconceito, e tantos conflitos que nos igualam, independente de nossas diferenças culturais.
Em “Felizes quase sempre”, a brincadeira é com esse lugar comum que fecha as inúmeras e modernas novas versões, lembrando que os contos originais, que datam do século XVII, não eram adeptos de finais felizes. O lobo realmente esquartejava e comia a vovozinha, e depois, de sobremesa, deliciava-se com a Chapeuzinho, sem nenhum caçador para salvá-las desse destino cruel. Não havia, portanto, apaziguamentos ou lições de moral.
Aqui, Antonio Prata e Laerte partem dos estereótipos, desde o era uma vez, passando por carruagens, cavalos brancos, castelo, até a resolução do conflito pelo herói, no caso heroína. Quebram, porém, alguns paradigmas: o príncipe encantado é negro, e quem tem a ideia genial é a garota, a princesinha. Trazem também elementos contemporâneos em meio aos antigos – para saber os nomes dos personagens “felizes para sempre” a serem convocados para a assembleia, o príncipe e a princesa fazem uma busca na internet e enviam emails. Na ilustração de Laerte, bastante orgânica com o texto, temos um teclado com elementos das histórias clássicas (coroa, pergaminho, maçã, espada, harpa), movido à manivela, com um pombo correio dele saindo e portando uma cartinha no bico.
Nessa brincadeira, quebram também o paradigma da infelicidade – em vez de vítimas da crueldade da madrasta invejosa, da voracidade do lobo, em vez de abandonados na floresta e de bruxas capciosas disfarçadas de velhinhas bondosas, nossos personagens são brindados com situações frustrantes bem prosaicas, como braço quebrado, abelhas no refrigerante, coco de cavalo, dias chuvosos, gripe estragando o final de semana. Ou seja, nada de grandes desgraças protagonizadas pelos vilões, apenas aqueles reveses bem comuns em nosso dia a dia...
É livro para ser deliciado junto com os pequenos, além de abrir campo para inúmeras viagens, desde aquelas que retomam a estrutura dos contos infantis até as inúmeras formas de quebrá-la; inclusive, como nesta história, criando uma interlocução muito divertida entre personagens e autor, que pode levar a uma reflexão bem interessante e fértil sobre a arte de criar/escrever histórias. Uma graça, realmente!
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