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10/09/2009 Claudia Perrotta “Tem jacaré no lago?”
A Grande Família – Rede Globo
Tô sentindo cheiro de macho...Tem jacaré no lago?”
É com essa fala que Paulão, o mecânico de A Grande Família (Rede Globo), inicia o diálogo com Marilda, ou Marilza, como costuma chamar a ex-namorada, no episódio que foi ao ar no dia 20/08/2009. O tema era o relacionamento amoroso entre uma mulher mais velha, no caso a personagem cabeleireira, e um rapaz bem mais novo, Leleo, que toda a vizinhança do bairro viu crescer. Ainda sem saber do namoro de Marilda, Paulão invade o salão e logo descobre que o tal jacaré que “está pegando” sua ex é Leleo:
- Eu tô chocado, Marilza, você tá de coisa com esse moleque aí?
- Não tenho do que me envergonhar, não, o Leleo é uma graça de menino e eu vou sair com ele sim, qual é o problema?
-Isso é peidofilia! Eu vou chamar a polícia!
- Qual é, ele é maior de idade, não tô fazendo nada de errado!
- Ah é? Então vou contar pra Graucia [mãe] quando ela for buscar o carro dela na oficina, eu vou contar pra ela!
Com personagens bem delineados, ótimos atores e tramas muito bem amarradas, além de não perder a graça, o popular seriado A Grande Família vem mantendo um bom índice de audiência há anos. Isso ocorre porque, além de abordar temas do cotidiano do brasileiro comum, tem como uma de suas características a brincadeira com o modo de falar de cada um dessa família.
Vejamos alguns exemplos: Lineu, o pai interpretado por Marco Nanini, nunca erra no português em seus discursos lógicos, transpirando retidão de caráter e rigidez nas condutas. Agostinho, Pedro Cardoso, faz exatamente o contraponto do sogro: “fala enrolado”, com uma articulação imprecisa, que serve muito bem à intenção de esconder suas enganações; ele usa como estratégia para convencer o apelo à emoção do interlocutor, se faz de vítima e constrói seu discurso com restos de discursos alheios, apostando na aparente consistência de ideias. Toda essa farsa se delineia no modo como fala.
Mas o personagem que queremos focar aqui é Paulão, o mecânico que fala tudo “errado”: em vez de Glaucia, Graucia, em vez de pedofilia, peidofilia. Não há como não rir, mas esse nosso riso esconde, na verdade, o que chamamos de preconceito linguístico.
Marcos Bagno, doutor em Língua Portuguesa, mestre em Linguística e escritor premiado, já abordou o tema. Em seu livro intitulado, justamente, Preconceito Linguístico (edições Loyola), adverte: “temos de fazer um grande esforço para não incorrer no erro milenar dos gramáticos tradicionalistas de estudar a língua como uma coisa morta, sem levar em consideração as pessoas vivas que a falam”. E se propõe a desmistificar algumas ideias equivocadas que circulam na sociedade sobre o que seria falar bem, e que inevitavelmente levam à perpetuação de mecanismos de exclusão.
Um dos mitos abordados por Marcos Bagno é exatamente o que embasa a construção do mecânico Paulão: “As pessoas sem instrução falam errado”. O que sustenta essa afirmação é a ideia de que a única e verdadeira língua portuguesa é aquela “ensinada nas escolas, explicada nas gramáticas e catalogada nos dicionários”. Tudo que foge a esse padrão é, pois, apressadamente qualificado como errado, deficiente, e não raramente suscita risos de desprezo dos interlocutores.
Como exemplo, Bagno cita o fenômeno de transformação do L em R em encontros consonantais, como ocorre na fala de Paulão - Gráucia no lugar de Gláucia. E adverte: não se trata de ignorância, mas sim de um “fenômeno fonético que contribuiu para a formação da própria língua portuguesa padrão”. Assim, temos: branco, que vem do germânico blank; cravo, escravo, dobro, do latim clavu, sclavu, duplu; prata, do provençal plata. E ainda, como destaca Bagno: Luís de Camões escrevia: ingrês, pubricar, frecha, e continua sendo um dos maiores autores do português clássico, com seu poema Os Lusíadas... Trata-se de um fenômeno denominado “rotacismo”, que “participou da formação da língua portuguesa padrão..., mas continua atuante no português não-padrão”.
Paulão, portanto, não tem qualquer problema articulatório que o impeça de pronunciar os encontros consonantais, e não precisa de tratamento fonoaudiológico! Esse personagem de A Grande Família nada mais é do que um legítimo representante dos “brasileiros falantes das variedades linguísticas não-padrão”, e que, por pertencerem a classes sociais desprestigiadas, “que não têm acesso à educação formal e aos bens da elite”, sofrem o preconceito linguístico, advindo do preconceito social: “sua língua é considerada “feia”, “pobre”... quando na verdade é apenas diferente da língua ensinada na escola”. Destaca Bagno: “o que está em jogo não é a língua, mas a pessoa que fala essa língua...”.
Gráucia, Gláucia, Marilda, Marilza, Paulão: pertencemos todos a essa grande família que fala o português!
Do autor Marcos Bagno, leia também: "Nada na língua é por acaso", Parábola Editorial.
E confira o site: marcosbagno.com.br
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